Marco Túlio da Silva
Sara Costa Félix Teixeira
A pertinência de uma reforma tributária é reconhecida pelos mais diversos atores da sociedade brasileira. Só no Congresso Nacional existe atualmente cerca de uma dezena de projetos.
Já tivemos oportunidades de abordar a temática da reforma tributária, no que nos alinhamos aos referenciais do documento denominado Reforma Tributária Necessária[1]. Nosso pensamento foi expresso na palestra proferida em 2019 por Antônio Bernardes, Lucas Espeschit e Marco Túlio por ocasião do VII Encontro do Fisco Estadual Mineiro.
Na introdução do referido documento (Reforma Tributária Necessária) aponta-se que a tributação brasileira está na contramão de outros países capitalistas relativamente menos desiguais. No Brasil, a tributação é extremamente regressiva, porque incide fundamentalmente sobre o consumo e não sobre a renda e a propriedade.
Não é verdade que a nossa carga tributária seja elevada, na comparação internacional, mas é fato que temos a maior carga tributária, em todo o mundo, a incidir sobre o consumo, repassada aos preços das mercadorias.
Com esse modelo captura-se proporção maior da renda dos pobres - que em regra gastam a maior parte da renda em consumo - e captura-se menor proporção da renda dos ricos, isso devido à decrescente propensão marginal ao consumo, ou seja, a cada unidade monetária de acréscimo na renda menor o acréscimo no consumo.
Seja pela necessidade da sociedade de montante de recursos (carga tributária) compatível com suas demandas, seja pela necessidade de uma tributação melhor distribuída entre consumo, renda e propriedade, com justiça fiscal, bem como que garanta às unidades da Federação recursos compatíveis com seu papel para a entrega dos bens e serviços à sociedade, o Brasil e os brasileiros precisam da ReformaTributária.
Mas uma Reforma Tributária requer amplo debate e observância de ritos legislativos, demandando longo tempo para sua efetivação, concretude e até transição, o que a economia e as desigualdades sociais não poderão esperar. Enquanto isso há melhorias urgentes e factíveis, conforme passaremos a expor.
Ainda que as Administrações Tributárias (AT) sofram na atualidade com o contexto de poucos servidores e estrutura aquém do ideal, a evolução recente em qualificação e uso intensivo de tecnologia permite ajustes que impliquem em avanço, tanto para as AT quanto para as empresas (contribuinte de direito) e cidadãos (contribuinte de fato). Aqui faremos um recorte para abordar melhorias aplicáveis ao Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (ICMS)[1], o que denominamos de Reforma do ICMS.
Além do que já expusemos, a pandemia da Covid-19 tornou ainda mais urgente melhorias no ICMS, de forma a torná-lo um Imposto sobre Valor Adicionado (IVA) moderno, neutro, simples, progressivo e atraente ao investimento.
No Brasil tal imposto surgiu com uma alíquota e poucas isenções. Para combater aregressividade[2] ocasionada pela tributação uniforme isentou-se bens[3] da “cesta básica”.
Essa “solução universal”, além de beneficiar itens fora do consumo dos carentes (filés, cafés gourmets, etc.), permite aos abastados se apropriarem da maior parte do benefício, pois consomem mais todos os bens beneficiados.
Conforme a Figura 1[4], os 30% mais pobres receberam menos de 14% (R$ 489 milhões) dos benefícios, enquanto os 30% mais ricos ficaram com 50% (R$1.784 milhões).
Figura 1 – RENÚNCIAS FISCAIS DO ICMS – RIO GRANDE DO SUL (2015)
Fonte: Padilha, G.(2017).
Com as isenções e para manter a receita necessária à prestação de serviços públicos, implantou-se várias alíquotas.
Ocorre que no IVA a multiplicidade de alíquotas é prática em desuso no mundo[5], pois aumenta custos para contribuintes e Administração Tributária[6], e provoca divergências na interpretação da legislação, fomentando a insegurança e o contencioso.
As isenções também mitigam o tratamento diferenciado dado às micro e pequenas empresas[7]e impõem às demais o estorno do crédito do imposto cobrado na etapa anterior, redundando em cumulatividade e custos.
Ainda, a vedação aos créditos de material de uso e consumo e o parcelamento do crédito de bens destinados ao ativo permanente desestimula investimentos.
Esses fatores evidenciam a urgência e a necessidade de disrupção no modelo do atual ICMS, na linha do IVA moderno - poucas alíquotas e isenções mais crédito financeiro -, e incorporando a personalização do ICMS, o ICMS-P.
Assim, propõe-se medidas que dependam de normas infraconstitucionais, de implementação mais ágil e simples, e que resolvam três dos principais problemas do ICMS:
1) Problema: multiplicidade de alíquotas e de isenções.
Solução: redução das isenções e alíquotas.
No campo das isenções, devem ser eliminadas aquelas tipo “solução universal” , permitidas as direcionadas a determinadas pessoas físicas e jurídicas. Recomenda-se também tratar os benefícios fiscais sempre com a devida motivação e transparência, afinal a forma como o Estado obtém ou deixa de obter os recursos para exercer suas funções interessa a toda a sociedade, então destinatária final do valor arrecadado.
Já no tocante às alíquotas, embora o ideal seja a existência de apenas uma, face à dificuldade de conciliar receitas e despesas públicas propõe-se duas alíquotas, a superior aplicada à lista exaustiva de operações e prestações e a inferior aos demais casos.
As alíquotas deverão ser calibradas, em cada unidade da Federação, de modo a manter o volume de arrecadação atual do imposto, considerando os efeitos do conjunto de sugestões apontadas neste artigo.
2) Problema: vedação ao crédito de material de uso e consumo e parcelamento do crédito de bens adquiridos para o ativo permanente.
Solução: reconhecimento do crédito imediato “crédito financeiro”.
O crédito imediato (parcela única) relativo a bem do ativo permanente e a material de uso e consumo incentiva investimento e produção, tão necessários, ainda mais no pós-pandemia, além de reduzir vários litígios atualmente existentes.
3) Problema: regressividade do imposto e renúncia fiscal desfocada do seu objetivo.
Solução: Personalização do ICMS (ICMS-P).
A “personalização” do ICMS consiste na desoneração, mediante “devolução”, de todo ou parte do imposto associado ao consumo de determinados contribuintes.
Enquanto na “solução universal” o benefício é direcionado às empresas no pressuposto de que estas o repassarão ao preço, a “personalização” entrega o benefício DIRETAMENTE à população alvo.
A “personalização” está incorporada em todas as propostas de reforma da tributação sobre o consumo em tramitação no Congresso Nacional[8] [9].
Essa devolução focalizada varia de forma inversamente proporcional à renda da família beneficiada, devendo-se adotar valor máximo mensal para evitar eventuais desvios.
Conforme a Figura 2, o ICMS-P diminui a alíquota real para famílias mais pobres (média de 80% nos 3 primeiros estratos), com pouco incremento para os mais ricos (média de 0,62% nos 5 estratos superiores), conforme simulação.
Figura 2 – PRESSÃO FISCAL DO ICMS-P – RIOGRANDE DO SUL (2015)
Fonte: Padilha, G. (2017).
Portanto, a “personalização” mais do que mitigar a regressividade, promove a progressividade do ICMS e vai ao encontro do comando constitucional de que os impostos tenham caráter pessoal e progressivo.
Com a Reforma do ICMS aqui proposta, de implementação relativamente ágil e simples, ele passa a ser mais neutro,simples, progressivo e atraente ao investimento.
Concluímos ressaltando que precisamosde mais pontes e menos muros. Pontes para conectar, integrar e fazer fluir. Os sonhos podem e devem ser utópicos e de infinitas possibilidades, mas o sonhador deve agir no presente e construir um sonho possível, com os elementos de sua realidade.
Algo como se extrai de trechos da canção de Raul Seixas “Enquanto você se esforça pra ser, um sujeito normal, e fazer tudo igual. Eu do meu lado, aprendendo a ser louco, um maluco total, na loucura real. E esse caminho que eu mesmo escolhi, é tão fácil seguir. Controlando a minha maluquez, misturada com minha lucidez”[10].
[1] A Reforma Tributária Necessária: diagnóstico e premissas / Eduardo Fagnani (organizador). Brasília: ANFIP: FENAFISCO: São Paulo: Plataforma Política Social, 2018.
[2] A análise, diagnóstico, dados e propostas relativas ao ICMS constantes deste texto é fruto de processo de cocriação dos autores com os Auditores Fiscais Geraldo Magela Verneque Costa (SEF-MG), Giovanni Padilha da Silva (SEF-RS), Michel André Bezerra Lima Gradvohl (SEF-CE) e Paulo Ricardo Saldanha Guaragna (SEF-RS).
[3] A carga tributária recai em maior proporção sobre as famílias mais pobres.
[4] Essa medida de concessão de isenções integrais ou parciais aplicáveis a determinadas mercadorias, independentemente da situação do consumidor, é conhecida como “solução universal”.
[5] Padilha, G. (2017). ICMS Personalizado (ICMS-P): un IVA moderno, eficiente y equitativo. Tesis doctoral. Universidad de Alcalá. Alcalá de Henares. (2017). Com uso de microssimulação estática, tendo por base a estrutura de consumo da população do Estado do RioGrande do Sul.
[6] O International Tax Dialogue (2013) informa que 45% dos países que possuíam IVA em 2013, utilizavam uma única alíquota positiva, enquanto 25% optaram por utilizar duas; e apenas 8% utilizavam quatro ou mais. Também se constatou que 80% dos IVA instituídos ou reformados nos anos de 1992 a 2013 utilizavam alíquota única.
[7] EBRILL, L., KEEN, M., BODIN, J.P. e SUMMERS, V. The Modern VAT. International Monetary Fund, Washington, D.C., 2001. Os autores informam que o tempo consumido para auditar empresas quando o IVA possui múltiplas alíquotas é 30% a 40% superior ao exigido no caso de alíquota única.
[8] Já que as isenções alcançam as operações realizadas por todos os contribuintes, independente do seu porte.
[9] O Brasil, com a disseminação dos documentos fiscais eletrônicos e do Cadastro Único, reúne as condições necessárias para implantar o ICMS – P.
[10] A “personalização”, inaugurada pelo Japão e Canadá, é recomendada por economistas do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).
[11] Trechos da letra dan música Maluco Beleza. Composição de Claudio Roberto e Raul Seixas.
Foto: Joel Santana